segunda-feira, 26 de maio de 2025

O Prazer de Servir

"Poesias e Devaneios", Nº 146

Toda a natureza é um serviço.

Serve a nuvem, serve o vento, serve a chuva.

Onde haja uma árvore para plantar, plante-a você;

Onde haja um erro para corrigir, corrija-o você;

Onde haja um trabalho e todos se esquivam, aceite-o você.

Seja o que remove a pedra do caminho,

O ódio entre os corações e as dificuldades do problema.

Há a alegria de ser puro e a de ser justo;

mas (lá, sobretudo, a maravilhosa, a imensa alegria de servir.

Que triste seria o mundo, se tudo se encontrasse feito,

se não existisse uma roseira para plantar, uma obra a se iniciar!

Não o chamem unicamente os trabalhos fáceis.

É muito mais belo fazer aquilo que os outros recusam.

Mas não caia no erro de que somente há mérito

nos grandes trabalhos;

há pequenos serviços que são bons serviços:

adornar uma mesa, arrumar seus livros, pentear uma criança.

Aquele é o que critica; este é o que destrói; seja você o que serve.

O servir não é faina de seres inferiores,

Deus que dá os frutos e a luz, serve.

Seu nome é: AQUELE QUE SERVE!

Ele tem os olhos fixos em nossas mãos

e nos pergunta cada dia: SERVIU HOJE? A QUEM?

À ARVORE? A SEU IRMÃO? À SUA MÃE?

Por Gabriela Mistral 


"Toda a natureza é um serviço."


Eu te amo, mas eu ſygo.

"Cartas Perdidas", Nº 45


Lixboa, aos dez e seis dias do mes de Janeiro do anno de 1596.


Minha muy amada e gentyl Senhora,

Tomar me he por bem a pena, com mãas tremlosas e coraçam magoada, pera espriuir estas mal traçadas linas, que som derradeiras testemunyas de huũ amor que me foy sempre dulçura e que ora se ve lançado às fortunas aduersas.

Assaz me fere o peito saber que os fados, em sua cruel dança, quizeram apartar-nos, como quem separa as estrellas que em outro tempo cintillauam juntas no firmamento. Nã cuide vossa mercê que me falte amor, que se bem sabeis, nunca me he escaceou; antes, foy este amor lyuz que me guiou nas mais negras noites e sustento em meus dias mais languidos.

Mas, ay de mi, nem sempre basta amar, quando o tempo, e a ventura, e as cousas do mundo, se tornão contra os desejos do coraçam. E posto que me doa tam grandemente, hei por bem consentir que cada hum siga seu caminho, como folhas que se apartão ao sabor do vento.

Leuo comigo, cravado no âmago, vossa dulçíssima lembrança, vossos sorrisos, vossas palavras ditas em meiguice e em silenço, que ora se tornam suspiros que me escapam sem querer. E vos juro, por minha fee, que nenhum instante vivido em vossa companhia será esquecido, antes permanecerá, como se fôra pintura vyua em minha memoria.

Se algũ dia, por merce dos Ceos, nossos olhos se tornarem a cruzar nos caminhos da vida, rogo que seja com brandura, e que possamos reconhecer, no silenço desse encontro, que foy amor — amor verdadeiro, amor inteiro — ainda que findo no corpo, mas eterno no espírito.

Resta me pois, com lagrymas que manchão este pergamino, desejar-vos auentura, saúde e alegria. E que Deos, em sua infinita graça, vos guarde e vos faça bem auenturada.

Adeos, minha Senhora, e que o Ceo vos tenha em sua guarda.

Vosso, que sempre vos amou e ha de amar, mesmo no silenço da ausência,

Aamar-te-hey, mesmo asy, allém da vyda terrena.

 


"Aamar-te-hey, mesmo asy, allém da vyda terrena."

sábado, 17 de maio de 2025

O Preço da Sobriedade

"Reflexões Pessoais", Nº 42

Há um peso intrínseco na sobriedade. É sobre se manter sóbrio, não digo apenas sobre embriagar-se no vinho ou outra coisa mais forte, mas estar ébrio de sentimentos falsos, alegrias enganosas e amores farisaicos.

Estar sóbrio, nesse sentido, é recusar o torpor das ilusões confortáveis, é encarar de frente a dureza do real — mesmo que doa, mesmo que fira. É não se anestesiar com promessas vazias ou risos forçados, é preferir o silêncio verdadeiro ao barulho fingido. A sobriedade, então, passa a ser resistência: uma escolha consciente por lucidez em um mundo que embriaga com facilidades e disfarces.

Então, mesmo que na embriaguez de falsas felicidades inexistentes o ar pareça doce, é melhor respirar a névoa de caco de vidro, mas que ao menos é real, é factível!

E é muito salutar que eu esteja fora da zona de conforto. Até achei que era invencível, um dia achei, de forma leviana! Mas não sou, nunca fui invencível! Salutar também é ter o pensamento como um punhal espetando meu fígado á todo instante, lembrando o quanto eu fui humilhado! Mas é importante, que nunca cesse completamente o incômodo e a leve dor, para que o combustível se mantenha sempre dentro de mim, internalizado como uma caldeira, para que o aço dentro de minha alma seja forjado.

O problema é que esse aço, por mais forte que pareça, não aquece — apenas isola. Com o tempo, tudo em mim vai se tornando mais contido, mais cauteloso. Os sorrisos vêm com filtro, os abraços com medida, e os pensamentos já não se oferecem com tanta leveza. A sobriedade cobra caro: é o preço de enxergar demais, sentir demais e não se deixar levar por qualquer encantamento passageiro.

Recusar as ilusões tem um custo alto — especialmente quando o mundo inteiro parece prosperar dentro delas. Eu fico, muitas vezes, à margem. As conversas se tornam rasas, os vínculos frágeis, e o convívio, por vezes, uma coreografia desconexa. Quando se vive sóbrio demais, o brilho que encanta os outros parece sempre ofuscante demais pra nós. E, inevitavelmente, nos tornamos o estranho na festa, aquele que não dança porque vê a música pelo que ela realmente é: um disfarce do silêncio.

Às vezes, me pego questionando se essa lucidez toda vale mesmo a pena. Se não teria sido melhor ter me permitido apenas flutuar com os outros, rir mais, crer mais. Mas logo percebo: o que me mantém firme hoje é justamente aquilo que me fez sofrer ontem. A dor que enfrentei sem anestesia também forjou a solidez que hoje sustenta meus dias, ainda que mais densos, ainda que mais solitários.

O preço da sobriedade é esse: ela nos livra das quedas e nos priva dos voos. Somos chão firme, mas raramente céu aberto. Ainda assim, há uma dignidade silenciosa nisso — uma espécie de paz dura, sem enfeites, mas que nunca mente. E talvez isso, no fim das contas, seja tudo o que me resta: uma existência honesta, mesmo que pesada. Muito pesada!



"Foge a razão perfeita a toda a extremidade,
E deve a gente ser sagaz com sobriedade."


Molière